Uma odisseia no Detran

Os cariocas reclamam muito da Lei Seca, da vistoria anual de seus carros, do mau tempo, de uma semana improdutiva jogada no lixo, mas creio que todos – lá no fundo de suas almas penadas – são favoráveis a essas questões. Por mais que sejam desconfortáveis, constituem o chamado mal necessário. É como tomar um gol do time adversário, virar a partida para 2 a 1 e levantar a taça. É como fazer uma caminhada de três horas e meia na mata fechada, com bolha no pé, filho de treze anos chorando aos berros pedindo colo, formigas criminosas subindo pela sua meia soquete – aliás, que ideia de girico caminhar na mata de meia soquete -, teias de aranha grudando no seu braço e a fome te deixando com dor de cabeça, mas depois de tudo isso, deslumbrar uma cachoeira paradisíaca com água cristalina.

Foi com esse sentimento que eu peguei o meu carro às 15 horas de uma quarta-feira e me dirigi (literalmente) até o posto do Largo do Machado. Já no meio do trajeto, recebo uma ligação da moça que trabalha comigo. Foi ela quem passou a relação de todas as multas a serem pagas e marcou a vistoria.

– Paulo, apareceu mais uma multa no sistema. Como ela só vence em setembro, pensei que não precisava pagar antes dessa vistoria. Mas acabei de falar com uma pessoa do Detran. Se você não quitar essa multa agora, será preciso voltar lá num outro dia só para pegar o certificado.

Sorte que eu estava com o papel da multa na minha mochila. Em vez de continuar pela Voluntários da Pátria, deu tempo de dobrar à esquerda visando o Itaú do Humaitá. Uma fila absurda e, pra piorar, o livro que eu estava lendo ficou no carro. Era um infeliz para atender o povão e outro infeliz para atender a velharia. Ao dizer infeliz, estou querendo dizer que os dois funcionários provavelmente estavam tristes porque não haviam outros para dividir o grande volume de trabalho com eles. E não porque são medíocres ou exercem um trabalho indigno. Muito pelo contrário. Lidar com somas de dinheiro às vezes astronômicas diante de pessoas insanas não é para qualquer um. Isso sem contar que digitam no teclado com a mesma velocidade do Cazé Peçanha no extinto programa Teleguiado, da MTV. Para ilustrar o meu pensamento, clique  no link ao lado e veja, mais precisamente aos 00:53 de vídeo: http://www.youtube.com/watch?v=uP061WtlPsk.

Confesso que eu já acreditei que ele digitava de verdade o nome das músicas das pessoas que ligavam (não existia internet naquela época). Há alguns anos o encontrei na Livraria Cultura de São Paulo, compenetrado, passeando por livros de arte importados. Me arrependo de não ter dito que era fã do Teleguiado e que ele era o melhor VJ da história daquela emissora. Talvez não o mais engraçado, vide Adnet, mas sem dúvida o mais culto e inteligente.

Apesar da demora no banco, me atrasei apenas 7 minutos. Fui designado ao vistoriômetro de número 4.  Lanternas, setas fronteiras, traseiras, esquerdas e direitas, abertura de capô, farol baixo, farol alto, limpador de parabrisas, raspadinha de chassi. Tudo certo. Eu havia me preparado para aquele dia como um mecânico que se prepara para entregar o carro de passeio do Ayrton Senna.

– Farol de neblina?

Aquele nome não me era estranho.

– Farol de milha? – continuou o vistoriador.

Também já tinha ouvido falar em farol de milha. Eu já desconfiava que farol de milha e farol de neblina eram a mesma coisa, mas agora eu tinha certeza.

– Acho que o meu carro não tem farol de milha – disse timidamente.

– Tem sim.

Comecei a ficar nervoso, mas não transpareci. A julgar pelo modo que ele me respondeu e pelo jeito desleixado que ele esperava a porcaria do farol de milha, provavelmente eu seria reprovado no teste. Apertei tudo que é botão, o limpador traseiro começou a operar no seco, o da frente em todas as velocidades da música do créu, de 1 a 5, também a seco,  liguei pisca alerta e depois desliguei imediatamente pro cara não achar que eu era maluco, dei umas três pressionadas no farol alto, não para ele achar que eu era maluco, mas de propósito mesmo, para descontar a minha raiva. Estava mais perdido que daltônico diante de um pote de jujubas. Perguntei baixinho para um outro vistoriador que estava sentado ali perto numa mesa plástica, dessas de boteco, “você sabe onde fica o farol de milha desse carro?”. Ele balançou discretamente a cabeça e fez um beicinho. Não estava a fim de ajudar. Até que uma pessoa aleatória, que certamente ouviu a minha pergunta, se aproximou do meu carro e apertou um botão escondido em cima da saída lateral esquerda do ar condicionado. Mais precisamente, ali, na minha fuça. Ficava entre o retrovisor do motorista ignorante e o volante. Nunca vou me esquecer daquele símbolo estranho, que parece a espinha de um peixe de desenho animado. Na verdade, o cara não chegou a apertar, apenas indicou com o dedo indicador e continuou andando. Provavelmente  era um daqueles anjos de filme de sessão da tarde que salvam o protagonista num momento difícil.

– Beleza. Agora acelera o carro e procure se manter naquela velocidade que aparece na tela do computador.

A espera de quase uma hora para receber o glorioso e cobiçado certificado de registro e licenciamento 2011 tinha tudo para ser uma chatice sem tamanho. As outras pessoas na sala de espera ao ar livre que o digam. Bufavam, gesticulavam e  reclamavam com os funcionários. Não os culpo. Provavelmente agiria da mesma forma se eu não tivesse um ótimo livro para me distrair. O mesmo que eu havia esquecido na fila do banco. Quando fui chamado, tive vontade de dizer “só um minuto, faltam 2 páginas para acabar o conto”. Saí de lá pensando em milhas acumuladas para uma viagem de avião, pamonha, milho verde e no jogo Enduro, do Atari, no qual a fase mais difícl era aquela em que o carros apareciam do nada e era quase impossível desviar. Era a fase da neblina.

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2 Respostas to “Uma odisseia no Detran”

  1. Alexandre Costeira Frazão Says:

    Belo texto, as always, mas um dia vou te levar para um odisséia na Receita Federal, e ai nem o seu ótimo livro de contos, vai te livrar do mau-humor e da “agradável sensação” de ser tratado como um potencial sonegador desde o segurança até o Delegado

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